Enquanto um autor se limita a narrar acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos supô-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus; quando se rebaixa a raciocinar, sabemo-lo falível. A realidade procede dos fatos, não dos raciocínios; a Deus toleramos que se afirme “eu sou o que sou” (Êxodo 3:14), não que declare ou analise, como Hegel ou Anselmo, o argumentum ontologicum. Deus não deve teologizar; o escritor não deve invalidar com razões humanas a momentânea fé que exige de nós a arte. Há outro motivo: o autor que mostra aversão por um personagem parece não terminar de entendê-lo, parece confessar que este não é inevitável para ele. Desconfiamos de sua inteligência, do mesmo modo que desconfiaríamos da inteligência de um Deus que mantivesse céus e infernos. Deus, escreveu Spinoza (Ética 5:17), não odeia ninguém e não deseja ninguém.

 

Jorge Luis Borges, explicando porque os primeiros livros de H. G. Wells, que limitam-se a contar histórias e não se rebaixam a defender teses, são superiores aos demais. No processo, acaba esclarecendo porque Jesus só contou histórias. Ainda Otras Inquisiciones (1952).