O projeto não aborda a questão dos dependentes químicos, nem aponta o que pode acontecer com os usuários que vivem na região

Patrícia Benvenuti, da Reportagem

Foto: André Vicente/Folha Imagem

As discussões sobre o projeto da Nova Luz, que prevê a requalificação do centro de São Paulo, trazem à tona uma das questões sociais mais graves da capital paulistana, a questão dos usuários de crack.

As reformas incidirão justamente sobre a área que ganhou o apelido de Cracolândia, próxima à Pinacoteca do Estado, Estação da Luz, Sala São Paulo, pontos famosos e turísticos da cidade.

O projeto da Nova Luz, em si, não cita a questão dos dependentes químicos nem fornece pistas sobre o que acontecerá com os usuários que hoje vivem na região, o que gerou críticas até mesmo do Ministério Público Estadual.

A Prefeitura nega que a implantação do projeto Nova Luz esteja relacionada com a existência dos usuários e de moradores de rua na região.

O secretário de Desenvolvimento Urbano, Miguel Bucalem, argumenta que o projeto não aborda a questão dos dependentes químicos por ser essa uma questão mais “urgente” e que envolve diversos setores.

“Esse é um problema [dependência química] com uma urgência muito maior do que a transformação urbana da área e deve ser feito dentro de uma abordagem correta, que é saúde, assistência social, segurança, um conjunto de ações integradas”, afirma.

Segundo ele, a questão já está sendo contemplada pela Ação Integrada Centro Legal, que iniciou em 2009 e conta com operações de diversos órgãos municipais e estaduais, como Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Municipal de Assistência Social, Guarda Civil Metropolitana, Conselho Tutelar, entre outros.

Segundo a página do Programa Centro Legal na internet, o objetivo é “dar atendimento completo às pessoas que vivem nas ruas na região da Cracolândia, sejam dependentes químicas ou não, e dar-lhes tratamento de saúde e psicológico adequado, de acordo com suas necessidades”.

O programa funciona por meio de abordagens feitas nas ruas por agentes comunitários da Secretaria Municipal de Saúde e por agentes de proteção urbana da Secretaria Municipal de Assistência Social.

Internações

Apesar de a Prefeitura negar a vinculação entre o projeto da Nova Luz e a presença de dependentes químicos na área, a propaganda em torno de “soluções” para a área cresceu com a aproximação do lançamento do projeto “consolidado”, em agosto.

No início do mesmo mês, o prefeito Gilberto Kassab anunciou a criação de um mais programa para auxiliar a retirada de dependentes químicos que vivem nas ruas da capital paulista, especialmente na região central.

Constituído por três fases – recolhimento, triagem e destinação -, o plano prevê que agentes comunitários da saúde e assistentes sociais identifiquem os dependentes químicos, que deverão ser recolhidos por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM).

No lançamento da versão consolidada do projeto na Câmara, Kassab fez questão de frisar que os esforços da Prefeitura para a retirada dos dependentes químicos não estão relacionadas com o projeto.

“Existe uma preocupação crescente na região, não por conta desse projeto [da Nova Luz], mas por conta das pessoas que merecem, por parte do poder público, todo o apoio para que possam se recuperar”.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde informou, por meio de nota, que o plano não prevê internações forçadas, mas um “abrigamento forçado” nos centros de acolhida.

O órgão disse ainda que as internações voluntárias (aquelas que se dão com o consentimento do usuário), involuntárias (que se dão sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro) e compulsórias (determinadas pela Justiça) são realizadas “segundo as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde e as determinações da lei federal 10.216/2001”.

“Nos últimos dois anos, 4 mil pessoas oriundas das ruas foram encaminhadas para atendimento médico, em média mais de duas vezes cada uma delas”. A partir disso, segundo a Secretaria da Saúde, houve 1.705 internações para tratamento da dependência, 111 delas involuntárias ou compulsórias.

Higienização

No entanto, o integrante do Movimento Nacional da População de Rua Anderson Lopes Miranda reclama que grande parte das abordagens não é feita por agentes de saúde, e sim por policiais, muitas vezes de forma truculenta.

“A população é tratada como problema, crack, e nós não podemos ser tratados como caso de polícia”, afirma.

O presidente do Centro É de Lei, Bruno Ramos Gomes, que trabalha com os usuários da região da Luz desde 2003, lembra que a região tem um histórico antigo de repressão contra os usuários. Segundo ele, um esforço mais sistemático para retirar a população das ruas começou em 2005, na gestão de José Serra na Prefeitura, com a “Operação Limpa”. Desde então, já tentou-se diversas ações, com nomes diferentes mas sempre com o objetivo de “limpar” a região.

A situação, segundo ele, tende a se agravar agora, com a proximidade do início das obras do projeto.

“Tem todo um interesse político e financeiro na região, e aquela população é meio que o resto que deve ser tirado de lá para que eles consigam fazer o que querem com o espaço”, afirma.

A psicóloga e doutora em saúde pública Luciane Raupp, que pesquisou a dinâmica da região em sua tese de doutorado, questiona o motivo das ações sociais serem implementadas apenas com a iminência da reurbanização.

“Por que pensar nisso só agora? Acho que essa é uma pergunta pertinente. A dependência química existe desde o final da década de 1980 e quase nenhuma ação foi tomada”, diz.

“São Paulo é uma das [cidades] mais antigas no uso de crack, nossa Cracolândia é ‘original’, se comparada às outras que vêm surgindo. Na verdade São Paulo deveria estar pensando em estratégias e políticas públicas para replicar o resto do país, e não é o que vem acontecendo”, afirma Gomes.

Repressão

No Rio de Janeiro, a Prefeitura da cidade determinou, em maio, o recolhimento de todos os menores que estão nas ruas e que sejam dependentes químicos, principalmente de crack, para tratamento.

Em São Paulo ainda não estão previstas medidas do tipo, mas o diretor do Denarc (órgão responsável pelo combate ao tráfico da Polícia Civil paulista) já se manifestou, em entrevistas à imprensa, favorável à internação compulsória como a melhor forma de combater o tráfico e ajuda ao usuário.

Iniciativas tão extremas, no entanto, tendem a ser ineficazes, como explica Luciane. Ela lembra que a “Cracolândia” é composta por pessoas que apenas circulam em busca de drogas e outras que acabaram se estabelecendo na própria região. Essas últimas, segundo ela, apresentam um histórico de problemas sociais.

“Tem muito a questão da vulnerabilidade social ali, da pobreza. Essas pessoas vêm de famílias com problemas, muitas vezes fugindo. Você não pode trabalhar a partir da perspectiva de apenas internar aquelas pessoas porque eles não têm para onde voltar”, afirma.

Para Luciane, é preciso haver esforços integrados, que não trabalhem apenas na perspectiva de tirar as pessoas da região.

“A fórmula para isso já é sabida. A dificuldade é implementar a integração entre saúde e assistência social, habitação, programas que vão desde possibilitar mais vagas em abrigos, albergues, lugares com possibilidade de inserção social, e ampliação da rede de tratamento, com equipes de rua, baseadas no vínculo, a questão dos redutores de danos, agentes comunitários”, diz.

Para Gomes, é importante que haja ações do poder público, mas as medidas devem respeitar as diferenças entre os usuários. Nesse sentido, ele critica o Centro Legal, que se baseia na abstinência total e, principalmente, na urgência em retirá-las do espaço.

“Essas pessoas que constituem o espaço da Cracolândia têm vários rompimentos da vida que estão bem concretizados. Estão distantes da família, não têm nenhuma inserção no mercado de trabalho, problemas com a Justiça, de saúde. Muitas vezes esse tempo urgente da Prefeitura não é o mesmo tempo dos usuários e muitas ações acabam sendo inócuas”, avalia.

Uma alternativa mais eficaz do que a internação, para o presidente do Centro é de Lei, é a aposta em ações graduais de acolhimento.

“Acho que é abrir espaço de acolhimento para eles na região da Cracolândia seria ideal. Um espaço para eles tomarem banho, cuidarem das próprias coisas, poderem relaxar, terem com quem conversar. E são espaços de baixo patamar de exigência, que não exigem que ele tenha parado de usar, que esteja limpo ou que queira se tratar para freqüentar esse espaço”, argumenta.

Para Gomes, se não houver alternativas para os usuários, eles apenas migrarão para outra “Cracolândia”.

“Se o projeto for pra frente, vão desapropriar, demolir e os usuários vão continuar em situação de rua, fumando pedra, vendendo pedra e se prostituindo. Essa população vai acabar migrando para outras regiões, e não sei se vai continuar esse esforço tão grande da Prefeitura em fazer coisas com eles porque aí não vai estar influenciando o projeto urbanístico”, afirma.

A gente sabe que tem que ter diálogo, se não só tem exclusão. É importante o debate para trazer essa população para a visibilidade”, afirma Anderson Anderson Lopes Miranda, do Movimento Nacional da População de Rua.

– Esta reportagem faz parte do dossiê publicado pela revista Brasil de Fato, leia mais em: http://www.brasildefato.com.br/novaluz/cracolandia